Em resposta a uma ação movida pelo Governo do Estado de São Paulo, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) expediu no último dia 19 de janeiro nove intimações de reintegração de posse contra famílias que vivem nas moradias do Hospital Dr. Arnaldo Pezzuti, em Mogi das Cruzes.
A medida que favorece o Estado estabelece que, caso o local não seja desocupado voluntariamente no prazo de 15 dias, está autorizado o uso de força policial para a retirada dos moradores. Dessa forma, a dignidade dessas pessoas é colocada em risco justamente por aqueles que deveriam garanti-la.
O complexo foi inaugurado em 1928 para abrigar os pacientes com hanseníase, também conhecida como lepra. Devido ao medo do contágio e o preconceito com os doentes, naquela época, no momento em que era feito o diagnóstico o paciente já recebia a notícia de que iria viver em uma moradia no local até a morte. Toda estrutura necessária à manutenção da vida humana lhes era oferecido, exceto o princípio básico que rege a humanidade: a liberdade.
Em 1990, descobriu-se que a doença não se propagava da forma como se acreditava até então. Com isso, passou a existir um decreto oficial de que as casas seriam emprestadas pelo Estado aos pacientes e seus agregados – familiares dos hansenianos – residirem ali durante o tratamento. Mas a partir do momento que houvesse o falecimento ou a cura do paciente, a família teria que desocupar o imóvel.
Muitas famílias de fato deixaram o imóvel quando necessário. Outras já foram despejadas. Hoje, nove famílias cujo hanseniano já faleceu, mas que alegam não terem conhecimento prévio dessa condição proposta, ainda vivem no local. E contam que não tiveram condições de sair, por falta de oportunidades devido ao preconceito que essa história deixou até os dias de hoje e a vida reclusa que tinham no complexo, que os impedia de estudar, socializar e trabalhar. Isso porque não eram só os pacientes que eram isolados, mas seus familiares também.
Uma das moradoras com ordem de despejo emitida, Tatiana Silva, 41, que mora há 30 anos no local, conta que esse preconceito os impede de arrumar um emprego formal para se sustentarem fora do complexo. “Se der o endereço daqui você é descartado do processo no mesmo instante.”
A vizinha de Tatiana, Marilisa Gislene Costa Borges, 36, também relata que o seu filho de 17 anos convive com esse desrespeito na escola, onde é chamado de “goiabinha” e “leprinha” diariamente.
Como se isso não fosse o bastante, de uma hora para outra, sem aviso-prévio, essas famílias tiveram que começar a conviver com o medo de serem despejados, já que não possuem outro lugar para viver.
Em 2020, o Estado começou a notificar esses moradores para deixarem o local em até seis meses. Frente a isso, a advogada Raquel Rondon, que defende as famílias, conta que um processo foi instaurando na tentativa de garantir um destino digno a essas pessoas. Porém, o juiz responsável pelo caso julgou a ação improcedente, afirmando que estas pessoas eram “invasores” por ainda continuarem lá.
DECISÃO – De acordo com o TJSP, em 2021, o Estado então ajuizou uma ação de reintegração de posse contra os moradores e logo a suspendeu, na tentativa de alcançar um acordo com cada uma das famílias.
Sem sucesso, em 2024, já na gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), foi solicitada a retomada do processo. Então, nove intimações foram expedidas, alegando que “o hospital em questão é estadual. Dessa forma, a posse é do Estado e quem ocupa a área possui mera detenção, e não direito de posse, considerada irregular desde que foram notificados a se retirar”.
A advogada explica que esses moradores possuem um prazo legal para defesa, que será apresentada. E segundo ela, por lei, essas famílias não devem ser despejadas dessa maneira.
“De acordo com a nossa Constituição Federal, o Estado tem a obrigação de prestar um serviço de assistencialismo em relação à moradia. E isso deveria ser aplicado neste momento. A gente cobra do Estado um programa assistencial para todas essas famílias.”
Felipe Bitante, 29, outro morador com ordem de despejo emitida, afirma que o desejo de todos é continuar no local onde vivem há anos e construíram suas vidas em meio a tanta dificuldade. Ao contrário do que muitos pensam, ele também esclarece que nenhum deles quer se aproveitar do Estado, mas sim viver com dignidade.
“Como vão nos colocar para fora sem nenhum meio de acolhimento? As pessoas que não têm estudo vão trabalhar do que? O que vão fazer da vida? Essa é a grande questão. Nós estamos dispostos a cumprir as obrigações. Pagamento de água, luz, impostos, todos os deveres que um cidadão tem. Ninguém quer ficar aqui de graça, só ganhar o benefício da casa.”
Não precisa circular muito pelo complexo para visualizar o descaso com o local. As moradias que já foram desocupadas, hoje, estão em completo abandono. Paredes destruídas, muito mato e roedores agora ocupam o local. A pergunta que fica é: por que tanta questão em reintegrar à posse de um lugar e despejar pessoas dali para deixá-lo como um lixão a céu aberto?

área destinada ao convívio dos locais – Foto: Cecília SIqueira
A equipe de reportagem da GAZETA questionou a Secretaria Estadual de Saúde sobre o assunto, mas, até o momento de fechamento desta edição, não tivemos nenhuma resposta.