Por Gisleine Zarbiettis / Arte: Giovanna Figueiredo
Como um país que tem a terceira lei mais moderna do mundo no combate à violência doméstica pode ser ao mesmo tempo o quinto que mais mata mulheres? A Lei Maria da Penha, que completa 15 anos hoje, é referência mundial, mas não atua sozinha. Carece não só de estrutura pública e investimento, mas principalmente de um olhar que abarque uma atmosfera cultural e busque as causas mais profundas dessa problemática social.
A violência doméstica gera custos ao sistema de saúde e à economia. Mulheres violentadas têm mais dificuldades de se reestabelecer emocionalmente e progredir profissionalmente. Tão importante quanto denunciar abusos e lutar por direitos é a necessidade de se autotransformar para ganhar um espaço legítimo.
É só a cultura que tem o poder de sensibilizar pessoas a se posicionarem diante da dor do outro, desconstruir hierarquias e a violência. Ações sociais não podem ser desprezadas, mas estão longe de empoderar. É com investimento em projetos culturais que se combate a violência doméstica em sua raiz. Não há outro caminho, se não o da arte, para curar feridas e somente mulheres curadas podem vencer o machismo estrutural.
A arte tem o poder de conectar o sagrado feminino, que é o despertar da consciência e a apropriação do corpo em sua totalidade e não àquele submetido a tabus e estereótipos – como descreveu Simone de Beauvoir – que legitimam as mais evidentes discriminações. Através da dança, do artesanato, da escrita, do desenho, da maquiagem e de qualquer outra forma de expressão e autocuidado a mulher consegue acessar o sagrado e desenvolver seu poder pessoal.
O desmantelamento das políticas culturais escancara o quanto a arte e a cultura ameaçam a supremacia patriarcal. É o desmonte cultural que financia a opressão. É do sucateamento da arte e da desvalorização dos artistas que emergem perfis estereotipados, que se apropriam da escalada feminista para reproduzir o discurso patriarcal e defender um projeto pessoal de poder.
Nunca alcançaremos a cura se o foco de qualquer ação for empoderar a mulher. Superar a violência doméstica significa curar o feminino. Para isso, mulheres precisam passar pelo processo de experimentação ao poder que lhe foi negado, o que perpassa pela cultura.